Reserva Parcial do Lago Niassa: construindo o futuro

Posted on
16 January 2017
Em 2011, Moçambique oficializou a criação da Reserva Parcial do Lago Niassa, dando assim um passo fundamental para a preservação da biodiversidade daquela que é uma das maiores reservas de água doce do continente africano. Num projecto marcado por uma participação comunitária activa, o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) Moçambique estabeleceu os pilares necessários para o nascimento da área de conservação, apoiando ainda o seu reconhecimento enquanto Zona Húmida de Importância Internacional pela Convenção RAMSAR.

Ao longo de séculos, o povo Nyanja tem habitado as margens do Lago Niassa, vivendo em estreita dependência dos seus recursos. É uma comunidade em crescimento, e o seu processo de miscigenação com outros povos reflecte isso mesmo. Em Moçambique, no distrito do Lago, que cobre toda a costa moçambicana do Lago Niassa, vivem hoje cerca de 115 mil pessoas - segundo projecções do Instituto Nacional de Estatística -, mais do dobro da população registada no censo de 1997. Esta é uma realidade transversal a todo o país e ao continente africano, e exprime a crescente pressão a que estão expostos os recursos naturais de regiões como o Lago Niassa, onde a maioria da população tem na pesca a sua principal fonte de alimentação e de rendimento.
“Os nossos avós diziam-nos que existia muito peixe (no Lago Niassa), mas agora vemos que está a diminuir cada vez mais”, constata Pedro Mpita, um activista comunitário e oficial de programas da Associação Umoji.

Com uma área de cerca de 30 mil km2, o Lago Niassa serve de região transfronteiriça a Moçambique, à Tanzânia e ao Malawi. O território moçambicano tem uma área de mais de 6.000 km2, e o Malawi reclama possuir o direito administrativo completo sobre a restante porção, embora a Tanzânia não o reconheça, naquele que é um conflito territorial que permanece por resolver há várias décadas.

É difícil saber ao certo quantos pescadores tem o Lago Niassa, mas dados de estudos socioeconómicos apontam para que sejam mais de 200 mil as pessoas ligadas directamente à actividade pesqueira apenas no Malawi. Em Moçambique, a informação dá conta da existência de cerca de 6.000 pescadores divididos em 165 centros de pesca.

Não são também rigorosos os números sobre a quantidade de pescado que é extraída anualmente das águas do lago, mas estimativas do ano de 2001 apontavam para que variasse entre 35 e 55 mil toneladas. Conhecidas que são as sucessivas quebras no volume de pesca desde meados da década de 1980, os indicadores sugerem que é o Malawi o país com a maior parcela de capturas, estimadas entre 25 mil e 40 mil toneladas de pescado.

A Moçambique caberá uma quota de entre sete a 10 mil toneladas, maioritariamente extraída com recurso a métodos artesanais.

“A população do distrito do Lago não pode ficar sem peixe, porque este é o alimento mais importante (da sua alimentação), além dos cereais”, reconhece Paulo Saíde, antigo Director Distrital dos Serviços de Actividades Económicos do distrito do Lago.

Num quadro de contínua degradação dos recursos pesqueiros do Lago Niassa, o WWF-Moçambique assumiu, em 2006, a liderança de um projecto de financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), no sentido de apoiar as autoridades moçambicanas na criação de uma área de conservação marinha no Distrito do Lago. A iniciativa estava inserida no Projecto Arco Norte, da USAID, que procurou desenvolver um polo de atracção de investimentos para dinamizar o sector do turismo nas províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa.

Para este objectivo, o projecto apostou numa forte componente de conservação da biodiversidade e preservação do ambiente, onde o WWF se destacava com as suas anteriores experiências de apoio à criação de estruturas de gestão de áreas protegidas, particularmente no Parque Nacional do Arquipélago do Bazaruto e no Parque Nacional do Arquipélago das Quirimbas.

Parcerias para o sucesso
A ideia de criar uma área de conservação que ajudasse a proteger a grande reserva de água doce que é o Lago Niassa – estudos indicam que contém 7% de toda a água doce disponível à superfície do planeta – atraiu outros investidores, permitindo que a parceria entre o Governo de Moçambique, a USAID e o WWF fosse alargada ao sector privado. Em 2007, com o apoio da Coca-Cola Corporation, o projecto passou a dispor de maior capacidade financeira para as necessárias actividades de investigação e de mobilização comunitária e institucional.

A criação de um comité de comité de coordenação de nível provincial marcou os primeiros passos do projecto, envolvendo-se o governo provincial do Niassa e as suas estruturas administrativas das áreas do Turismo, Agricultura (que geria a área das pescas) e Acção Ambiental.

“Era um grupo consultivo no sentido em que qualquer decisão que se tivesse de tomar teria de ter o envolvimento de todos os que tinham relacionamento com a questão a ser tratada”, recorda Domingos Madane, à época Director Provincial de Agricultura do Niassa.

Por outro lado, também ao nível local foi necessário criar um subcomité, reunindo o Governo do Distrito do Lago Niassa e representantes comunitários. Uma vez que os pescadores não estavam organizados em grupos formais, o WWF apoiou a sua institucionalização com a formação de Conselhos Comunitários de Pesca (CCP), para que pudessem ter uma representação activa no processo decisivo de criação e gestão da reserva.

“Quando o WWF veio, em 2007, tentou explicar o que é um CCP e, com a troca de experiências com outros comités de fora - Parque Nacional do Arquipélago das Quirimbas - percebemos que há uma grande vantagem na sua criação, porque também na zona deles havia desaparecimento de espécies marinhas”, conta António Cecílio, do CCP da aldeia de Chuanga.

A comunidade piscatória de Chuanga, às portas da vila de Metangula, capital do Ddistrito do Lago, foi a primeira que o WWF apoiou na criação de um CCP, mas, durante os anos seguintes, cerca de 20 outros comités nasceriam ao longo da margem moçambicana do Lago Niassa, entre os rios Utchesse (norte) e Lussefa (sul).
Simultaneamente, a equipa técnica do WWF preparou um estudo científico, socioeconómico, cultural e histórico que serviu de base à justificação da necessidade de criação da reserva. A sua concretização estava dependente do Ministério das Pescas, que possui a tutela da área de conservação, e dos ministérios do Turismo e da Coordenação da Acção Ambiental. Todos estavam envolvidos num comité nacional de gestão, cujo contacto com os de nível provincial e distrital o WWF facilitava.

O nascimento de uma área de conservação
Estima-se que a fauna ictiológica do Lago Niassa possua entre 700 a 1.000 espécies, a maioria das quais endémicas. Mas, o título de terceiro maior (e também profundo) lago de água doce do continente africano é também acompanhado de outras características que tornam a sua biodiversidade de valor único. A UNESCO descreve-a como “comparável às Ilhas Galápagos” no que se refere à importância do estudo da evolução das suas espécies de peixes.

O crescimento populacional e a pobreza são os dois factores que têm estado a contribuir para a degradação do habitat aquático do Lago Niassa, particularmente devido à actividade pesqueira com artes nocivas, como o uso de redes mosquiteiras ou a pesca em áreas de reprodução, que impedem os ciclos de crescimento e reprodutivo das espécies. A pesca ornamental desregulada é também um factor de preocupação.

Na área terrestre, também as actividades agrícolas sem técnicas adequadas, as queimadas descontroladas, o corte de madeira (e a consequente erosão dos solos), além da caça furtiva e das actividades de mineração colocam desafios à sustentabilidade deste ecossistema. O uso de agro-químicos em exploração agrícolas no Malawi representa uma ameaça séria para a qualidade da água.

Em Moçambique, o WWF desenhou assim uma intervenção que tinha em vista uma tomada de consciência das próprias comunidades relativamente a estas ameaças, e um plano de acção que permitisse a sua mitigação no contexto de uma área de conservação. Iniciativas de educação ambiental, incluindo programas de rádio em língua local, foram sendo implementadas, tendo ainda sido divulgada legislação nacional de referência, como as leis de Terras, Pescas e Florestas e Fauna Bravia.

“O nosso desafio era termos as pessoas a praticarem uma pesca sustentável e para podermos ultrapassar este desafio, tínhamos de trabalhar com a comunidade para a sensibilizar”, explica Paulo Saíde, recordando que o receio inicial das comunidades relativamente às restrições que iriam ser implementadas foi desaparecendo, porque as pessoas “entenderam que isso era necessário”.

Admitindo que o processo seria tanto mais fácil quanto mais participativo fosse, o WWF estabeleceu uma parceria com a Associação Umoji, uma organização local criada pela iniciativa de camponeses de 16 comunidades dos postos administrativos de Lunho e Cóbué, que receberam do Governo moçambicano, em 2003, uma certidão de gestão de uma área de conservação comunitária de 120 mil hectares, a Manda Wilderness.

“Nós criámos a área interior (Manda Wilderness) para conservar os animais e a floresta, porque isso pode trazer o desenvolvimento das nossas comunidades através do turismo”, explica o Coordenador da Umoji, Franki José, acrescentando que foi “essa experiência” que levaram para a zona costeira, sensibilizando as comunidades sobre a importância da criação da reserva.

Reconhecendo que a eficácia das iniciativas de sensibilização teriam de ser acompanhadas da aplicação da lei e por acções de vigilância, o WWF convidou os CCP a nomearem fiscais comunitários, que receberam formação no Gorongosa Wildlife College. Mais tarde, estes passaram a integrar patrulhas conjuntas, envolvendo a Marinha, a Administração Marítima e o Departamento de Pescas de Metangula. Um barco de alta velocidade, financiado pela (COCA COLA) Embaixada dos EUA em Maputo, foi disponibilizado para o efeito, assim como o apoio logístico necessário.

“Os fiscais comunitários foram preparados, e a acção do WWF foi também fundamental para os meios adquiridos. Por um lado, era necessário levantar a consciência, mas, por outro, deu-se o apoio necessário para que as coisas se verificassem na prática”, considera o antigo Director Provincial de Agricultura do Niassa, Domingos Madane.

Com as consultas comunitárias a decorrerem, comunidades do Posto Administrativo de Meluluca, a sul da vila de Metangula, pediram a sua inclusão na área da reserva, levando a que esta fosse estendida em mais de 30 quilómetros. Em 2009, a documentação legal para a criação da reserva foi submetida aos ministérios competentes, comtemplando uma área de 47,8 mil hectares, e uma zona tampão de 89,3 mil hectares, entre os postos administrativos de Cobué e Meluluca. Dois anos depois, no dia 12 de Junho, o então Presidente da República Armando Emilío Guebuza oficializava a criação da Reserva Parcial do Lago Niassa (RPLN).

Foi também no ano de 2011 que o Governo moçambicano assinou um acordo com a Convenção RAMSAR para que a região fosse reconhecida enquanto zona húmida de importância internacional, dado o valor dos seus mangais, bancos de ervas aquáticas e pântanos, e por se encontrar na rota de aves migratórias. Também aqui o WWF desempenhou uma função cimeira no estabelecimento dos contactos e no apoio à preparação da documentação necessária para a parceria. Depois do Complexo de Marromeu, em 2004, a RPLN tornava-se na segunda área moçambicana reconhecida pela convenção.

Comunidades lideram iniciativas de conservação
A preparação do Plano de Maneio da RPLN teve início em 2007 e terminou em 2014 com a aprovação dos ministérios das Pescas e da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural (anterior MICOA) do documento final que estabelece as linhas orientadoras de gestão para o quinquénio 2015-2019. Um plano de negócios foi também desenvolvido para o mesmo período como forma de garantir estratégias de sustentabilidade para a estrutura administrativa do parque, que não foi ainda criada pelo Governo moçambicano.

No terreno, no entanto, o WWF tem trabalhado com as estruturas administrativas e comunitárias locais para estabelecer zonas de protecção temporárias e completas, que permitam assegurar o ciclo reprodutivo dos peixes, contando esta e outras actividades com o apoio da Fundação MacArthur. No Posto Administrativo de Cóbué, por exemplo, em 2016, foram criados três santuários permanentes e sete temporários, devidamente identificados com bóias de sinalização.

“As bóias de sinalização têm uma protecção de um quilómetro em seu redor”, explica o ponto focal do programa de santuários da Associação Umoji, enfatizando que a designação das áreas “é uma decisão das próprias comunidades”.

Dinis João salienta que “os pescadores já começaram a perceber os benefícios e os objectivos dos santuários”, até porque sabem “que vão ter mais peixe e mais lucro”.
Por outro lado, as acções de sensibilização sobre pesca sustentável são agora acompanhadas por activistas formados no uso do Sistema de Monitoria Orientada para Fins de Gestão (MOMS), uma ferramenta simplificada de monitoria e gestão de recursos.

Joana Rafael Cassimo, Oficial de Género da Associação Umoji, explica que o seu trabalho é sobretudo dirigido às mulheres das comunidades de Cóbué.

“Há senhoras que levam redes mosquiteiras para pescar, e eu sensibilizo-as de que não podem fazer isso porque vão pescar peixe miúdo. Também lhes digo que não podem pôr veneno nos rios, porque matam todos os peixes, e isso vai fazer com que os peixes desapareçam do Lago Niassa”, diz.

Tanto ela como Pedro Mpita, Oficial de Programas da Umoji, fazem rondas semanais pelos centros de pesca comunitários para recolherem dados com o sistema MOMS. O objectivo é partilhar a informação com as comunidades de forma a aumentar a sua compreensão sobre os impactos das medidas de protecção ou da necessidade da sua implementação.

“Vamos aos centros de pesca e recolhemos dados, como o número de pescadores, o equipamento que usam, o peixe que pescam, e as actividades legais e ilegais que existem”, refere o activista.
Notando que a deslocação representa um grande desafio para as actividades de monitoria, dada a distância entre os vários centros de pesca, Pedro Mpita pede que o MOMS seja reforçado com mais meios, especialmente máquinas fotográficas que permitam registar as actividades ilegais dos pescadores e servirem de meio de prova.

Embora as patrulhas conjuntas dirigidas pelas autoridades e os fiscais comunitários estejam a produzir bons resultados, a ausência de uma estrutura administrativa na RPLN com meios de fiscalização próprios coloca desafios ao controlo das actividades ilegais e à aplicação da lei.

Na aldeia de Chuanga, por exemplo, o CCP local afirma que nem todos os pescadores estão licenciados, e há quem desrespeite os santuários criados pela comunidade.

“Nós tentamos impor as regras aos pescadores, mas há pessoas renitentes que não querem cumpri-las”, refere António Cecílio, notando que cabe às autoridades “fazer cumprir a lei”, porque o CCP “não pode fazer isso sozinho”.

O pescador pede que o Governo lhes dê “maior atenção”, e que incorpore os fiscais comunitários na estrutura administrativa da reserva, “porque foram treinados, mas agora não têm onde trabalhar”. Ao mesmo tempo, sugere que parte das receitas (10%) das licenças anuais de pesca sejam encaminhadas para os CCP, para que estes tenham capacidade de financiar as suas actividades. Estas têm sido fundamentais para a sensibilização dos pescadores sobre a importância do uso sustentável dos recursos do Lago Niassa, e a sua mobilização para o pagamento das licenças de pesca, uma fonte de receita fiscal do Estado moçambicano.

Um futuro sustentável
O sucesso do projecto de conservação da biodiversidade da RPLN depende do desenvolvimento socioeconómico sustentável das comunidades residentes. E é neste contexto que a intervenção do WWF tem procurado potenciar as fontes de rendimento das famílias, numa perspectiva de mitigação dos impactos da pressão humana sobre os recursos naturais do Lago Niassa.

Depois de ter dotado os pescadores e as associações locais de meios, como barcos a motor ou redes de arrasto adequadas, com o intuito de diminuir o impacto negativo da pesca nas zonas costeiras, a organização apoiou o desenvolvimento de Grupos de Poupança e Crédito Rotativo (PCR). Na ausência de sistemas formais de acesso a crédito, estes grupos têm permitido às famílias acederem ao financiamento que necessitam para potenciar o lucro da actividade pesqueira, ou encontrarem alternativas de rendimento, como o comércio de hortícolas e outros bens de primeira necessidade.

“Antigamente, não havia estes grupos, e nem se sabia o que era poupança, nem como se faz”, recorda António Cecílio, do CCP de Chuanga, notando que a prática é hoje frequente em toda a área abrangida pela RPLN.
Os PCR que dependem exclusivamente das contribuições dos seus membros, estão também a alterar as normas de género nas comunidades, e a participação das mulheres no rendimento das famílias é cada vez maior.

“As mulheres não faziam negócio: eram oprimidas, porque os homens não as deixavam. Mas, agora os homens já abriram os olhos, e eles fazem o seu trabalho e as mulheres o negócio (comércio de bens alimentares e de primeira necessidade, sobretudo)”, diz o pescador, sublinhando que os sinais positivos estão à vista de todos. “Todo o mundo tem casas melhoradas”, nota.

Como enfatiza o antigo Director Provincial de Agricultura do Niassa, Domingos Madane, a “chave” para o futuro sustentável da RPLN está “nos beneficiários dos seus recursos”, e a consciência de preservação só será possível com um contínuo trabalho de sensibilização, acompanhado da aplicação da lei. Alternativas de rendimento serão também necessárias, e o turismo oferece boas perspectivas. Por enquanto, as iniciativas de conservação implementadas mostram resultados promissores.

“O futuro da conservação do lago já está a mudar, porque há muitas espécies de peixe que tinham desaparecido, mas que já voltaram a aparecer”, conclui Joana Rafael Cassimo.

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